Revista FAPESP, Edição 162
A barreira do idioma
Estudo sugere correlação entre produtividade dos pesquisadores e sua competência em escrever em inglês
Fabrício Marques
Uma tese de doutorado defendida no final de 2008 forneceu dados inéditos e consistentes para um recorrente debate da comunidade científica: a desvantagem imposta aos pesquisadores brasileiros no cenário de publicações acadêmicas por não terem o inglês, o idioma consagrado da ciência, nem como língua materna nem sequer como a segunda língua do país. De autoria de Sonia Maria Ramos de Vasconcelos, do Programa de Educação, Gestão e Difusão em Biociências do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o estudo analisou diversos aspectos da desvantagem linguística, mas chamou atenção em especial por encontrar uma correlação estatística entre a produtividade dos pesquisadores e sua proficiência no inglês escrito. Em 2005, Sonia Vasconcelos teve acesso a um banco de dados, cedido pelo CNPq e derivado em parte da Plataforma Lattes, com informações sobre 51.223 pesquisadores brasileiros, incluindo produção científica em publicações nacionais e internacionais e proficiência em idiomas estrangeiros. As informações sobre a competência linguística são baseadas numa autoavaliação que contempla quatro habilidades – ler, falar, entender e escrever –, cada qual classificada na Plataforma Lattes como “bem”, “razoavelmente” ou “pouco”. O passo seguinte foi analisar a relação entre a competência em escrever em inglês com indicadores de produção científica dos pesquisadores registrados pelo CNPq e pela Brazilian Science Indicators (BSI), que contém informações sobre autores brasileiros na base ISI Web of Knowledge entre 1945 e 2004. Constatou-se que os autores com pouca ou razoável habilidade escrita concentravam-se no pelotão dos que publicavam menos, enquanto os mais hábeis figuravam em maior número entre os mais produtivos. Entre os que haviam publicado um a dois artigos em periódicos internacionais em inglês no período de 2001 e 2004, 53% declararam bom desempenho no idioma escrito e apenas 7,8% informaram ter pouca competência. Na faixa dos que publicaram mais de 50 papers, 91,8% declararam--se totalmente proficientes – e nenhum afirmou ter pouca habilidade na língua escrita. “Os pesquisadores com boa habilidade em escrever em inglês são consideravelmente mais produtivos, em termos de publicação de artigos, em relação aos que declararam competência razoável ou pouca”, afirma Sonia, que desenvolveu sua tese de mestrado em literaturas de língua inglesa e ministra cursos sobre comunicação científica em inglês para pós-graduandos e pesquisadores há pelo menos sete anos. “Os dados sugerem que a habilidade voltada para a comunicação escrita dos cientistas tem um impacto na visibilidade da ciência brasileira em periódicos internacionais de língua inglesa.”
Sonia fez o mesmo cruzamento de dados levando em conta agora as citações dos artigos. A correlação com a competência linguística se repetiu. Por fim, analisou o chamado índice h dos autores. O índice h combina produtividade e impacto e é definido como o número “h” de trabalhos que têm pelo menos o número “h” de citações cada um. Um pesquisador com índice h 30 é aquele que publicou 30 artigos científicos que receberam, cada um deles, ao menos 30 citações em outros trabalhos. Novamente, índices h elevados eram mais comuns entre pesquisadores com as melhores habilidades de escrever em inglês. Na amostra de indivíduos estudados, apenas 33% dos pesquisadores brasileiros declararam-se totalmente proficientes em inglês nas quatro habilidades. Como o que interessava era a capacidade de escrever, Sonia ateve-se a este tipo de competência, dividido na amostra da seguinte maneira: 44,4% declararam escrever bem, 35,2% de forma razoável e 13%, pouca habilidade. A pesquisadora alerta, no entanto, para o viés subjetivo dos dados, uma vez que as informações baseiam-se numa autoavaliação dos pesquisadores. Ainda assim, trata-se de uma evidência valiosa, diante da escassez de estudos sobre o tema. “Trata-se do primeiro estudo que mensura o impacto da proficiência na lingua franca da ciência sobre a produtividade e a visibilidade científica em um país da América Latina”, diz Jacqueline Leta, professora da UFRJ e orientadora, juntamente com a professora Martha Sorenson, da tese de Sonia. Essa parte do estudo foi publicada no ano passado na revista Embo Reports, do grupo Nature. Uma pesquisa com escopo mais genérico, publicada em 2004, chegou a resultados convergentes. Jonathan Man, professor da Universidade de British Columbia, no Canadá, comparou dados de financiamento para pesquisa de diversos países, pontuação do exame Toefl (Test of English as a Foreign Language) e produtividade em grandes periódicos da área médica. Países com média de pontuação no Toefl elevada, como, por exemplo, Holanda (616 pontos) e Dinamarca (606), publicaram proporcionalmente mais do que outros como a Suécia (589 pontos) e Japão (496 pontos). Estes últimos receberam maior financiamento para pesquisa e desenvolvimento, mas apresentaram desempenho inferior no Toefl. A influência marcante da variável linguística nesse estudo também foi observada para a produção científica de outros países, como a Coreia. À exceção do México, países da América Latina não foram avaliados no estudo.
Em 2004, ainda na fase piloto da pesquisa, Sonia Vasconcelos buscou identificar que problemas específicos estariam envolvidos na avaliação de um artigo científico escrito num inglês deficiente. A intenção era verificar até que ponto a barreira do idioma atrasava a publicação dos artigos, graças a longos processos de revisão e à devolução do manuscrito para o autor com dúvidas sobre o texto – na mais conhecida desvantagem dos pesquisadores brasileiros em relação aos que têm o inglês como língua principal. Ela fez uma consulta por e-mail a 40 editores de publicações internacionais de diversas áreas do conhecimento, indagando-lhes sobre problemas linguísticos em textos submetidos por pesquisadores que não têm o inglês como língua materna. Os comentários mostraram que os prejuízos eram mais complexos do que a demora da publicação. “Gasto boa parte de meu tempo no escritório editorial corrigindo gramática e melhorando o trabalho de autores que não falam inglês. É difícil encontrar boa ciência em artigos mal escritos”, disse Joan W. Bennett, professora da Universidade Rutgers, à época editora da Mycology e coeditora da Advances in Microbiology. A resposta que mais chamou atenção foi a de Robert McMeeking, editor do Journal of Applied Mechanics. “Todos os artigos escritos em bad english (inglês ruim) são rejeitados no processo de peer review porque, se o inglês é ruim, o conhecimento não pode ser compreendido no nível requerido para a publicação.” Harold H. Kung, editor da Applied Catalysis A, disse que 90% dos artigos escritos por pesquisadores que não têm o inglês como língua materna são devolvidos para revisão. “E pelo menos 50% requerem revisões substanciais”, afirmou. Graeme Bonham-Carter, editor da Computers & Geosciences, também confirmou o impacto da barreira linguística no processo de avaliação de artigos científicos. “Não há nenhuma dúvida de que a língua é uma barreira significativa para a publicação, e eu frequentemente me sinto mal em relação a isso. O conteúdo científico às vezes é forte, mas a linguagem é tão pobre que prejudica a compreensão”, disse.
O estudo de Sonia Vasconcelos teve repercussão no meio acadêmico. O projeto de tese foi premiado em 2007 pela Eugene Garfield Foundation em cooperação com a Chemical Heritage Foundation, pela originalidade da proposta e potencial de contribuição para a área de cienciometria. Os resultados foram discutidos num recente workshop da Associação Brasileira de Editores Científicos (Abec), realizado em Gramado (RS). “Todo mundo achava que essa correlação entre proficiência e produtividade existia, mas o estudo ajudou a colocar a questão em bases concretas. Estamos fora do eixo da língua inglesa e o mundo científico e acadêmico fala inglês”, diz Benedito Barraviera, professor de infectologia da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e presidente da Abec. “A Capes deveria exigir uma cobrança maior dos programas de pós-graduação em relação à competência de seus alunos nesse idioma. Até algum tempo atrás dizia-se que o paradigma da ciência era ‘publique ou pereça’. Agora é outro. Não basta publicar, mas publicar e ser citado em revistas de impacto. E quem só publica em português não consegue ser lido e muito menos citado”, afirma Barraviera.
A bióloga Márcia Triunfol faz ressalvas à associação entre proficiência e produtividade estabelecida no estudo. “Se o problema fosse só esse, seria resolvido com uma boa assessoria para tradução”, afirma Márcia, que trabalhou como editora assistente da revista Science e hoje comanda uma empresa de comunicação científica e peregrina pelo país fazendo workshops que orientam pesquisadores a escrever trabalhos científicos – em inglês. Sua experiência sugere que o problema é mais amplo. “O que eu percebo nos workshops é que faltam conhecimento e treinamento nos pesquisadores brasileiros para compreender o que é um artigo científico e o tipo de abordagem talhado para publicação em revistas internacionais”, afirma. “Um exercício que sempre proponho aos meus alunos é detectar a pergunta do artigo. Muitos não conseguem fazer isso. O problema, com certa frequência, é que o trabalho científico está apenas repetindo algo que já foi feito. Observo que falta domínio da linguagem científica, além de criatividade e ousadia para produzir contribuições originais. Quando esse objetivo é atingido, o menor dos problemas é arrumar um escritório que faça uma boa revisão do inglês.” Barraviera, da Abec, concorda com o diagnóstico. “Sou editor de revista científica e é comum receber artigos escritos por pesquisadores que não souberam planejar suas pesquisas nem executar os experimentos e pecaram na adoção de uma metodologia. O fato de não saberem também escrever em inglês é um detalhe numa cadeia de problemas”, afirma Barraviera, cuja associação organizou no ano passado um curso a distância de metodologia para estudantes. “Tivemos mais de mil inscrições para 350 vagas. Infelizmente, não tivemos recursos para repetir a experiência neste ano”, afirma.
Sonia Vasconcelos concorda que pode ser secundário o papel que a proficiência em inglês desempenha na produtividade acadêmica do país. “Os dados apresentados apresentam apenas mais um fator que se mostra relevante na produtividade acadêmica dos pesquisadores. Não significa que seja determinante; há inúmeros outros fatores já conhecidos, como o percentual do PIB investido em pesquisa, número de doutores envolvidos em pesquisa e desenvolvimento e a rede de colaborações internacionais dos pesquisadores. Entretanto, o essencial não é o tamanho relativo do problema, mas o fato de que ele existe e hoje faltam no Brasil estratégias para combatê-lo, ao contrário do que acontece em outros países”, afirma. Ela cita como exemplo a China e a Coreia do Sul, que desenvolvem políticas agressivas de incentivo ao ensino do inglês – e os próprios Estados Unidos. “Líderes da produção científica mundial, os norte-americanos mantêm a tradição de investir em writing centers em inúmeras universidades do país, possuem linhas de fomento exclusivas para serviços de editoração de linguagem e estimulam a utilização de escritórios editoriais instalados em vários centros de pesquisa”, afirma. O cenário linguístico do Brasil nem de longe enfrenta tais desafios. O ensino do inglês no Brasil, observa Sonia, busca basicamente o domínio da linguagem cotidiana. Embora haja vários projetos voltados para o ensino de inglês para fins específicos, não há uma abordagem estratégica e ampla que atenda a demanda para a comunicação científica em língua inglesa. O papel da competência linguística para escrever ciência na formação dos pesquisadores brasileiros é periférico, ela diz. No currículo das universidades públicas do país, o foco, na maioria das vezes, é o desenvolvimento da habilidade de leitura, não de escrita. “Todos nós sabemos que a habilidade de leitura em inglês é importantíssima na academia, mas como fica a escrita científica? Como formar jovens pesquisadores capazes de desenvolver sua própria voz na lingua franca da ciência?” No Brasil, e em boa parte da América Latina, disciplinas de comunicação científica em inglês tampouco fazem parte da tradição dos programas de pós-graduação em ciências. Além disso, não existem escritórios de edição de linguagem estabelecidos nas instituições de pesquisa brasileiras para dar suporte à produção escrita dos pesquisadores.
Num artigo publicado em 2007 na revista Embo Reports, Rogério Meneghini e Abel Packer, do Centro Latino-americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), relacionaram a questão da proficiência na escrita do inglês com o conceito de “ciência perdida do Terceiro Mundo”, estabelecido por W. Wayt Gibbs em 1995, para definir a pesquisa de interesse regional feita por pesquisadores de países periféricos que, contudo, permanece desconhecida nos países centrais. Para a dupla de pesquisadores, é razoável supor que parte dessa “ciência perdida” seja produzida por pesquisadores que preferem publicar em seu idioma materno em decorrência da dificuldade em escrever na lingua franca da ciência. “Tornou-se fundamental para um pesquisador dominar o inglês. Sem isso, ele sofre limitações em sua capacidade de trabalhar, pois não consegue, por exemplo, contribuir em redes internacionais”, diz Packer, que é diretor da Bireme. Packer, porém, faz restrições à ideia de que não existirá comunicação científica fora do inglês. “Existem áreas do conhecimento cujas tradições ou características exigem que a divulgação seja feita por outros idiomas e não há nada de errado com isso”, afirma, referindo-se às humanidades, às ciências agrícolas, sociais ou da saúde, cujos resultados podem ter impacto na sociedade, mas acabam não atingindo seu público, que não tem muita familiaridade com o inglês. “O multilingualismo é um dos fenômenos complexos vinculados à globalização e deve ser considerado como uma dimensão da comunicação científica”, afirma Packer, que critica a visão “autocrática” de áreas duras do conhecimento e de agências, para as quais a visibilidade internacional, medida por fatores de impacto, é mais importante do que o eventual impacto regional que um avanço do conhecimento possa promover. Ele menciona a biblioteca eletrônica SciELO, administrada pela Bireme e financiada pela FAPESP, que tem incentivado publicações científicas em português a produzirem edições bilíngues – ou ao menos coletâneas de melhores artigos nos dois idiomas.